O Earl of Essex e a biblioteca do Bispo de Faro
Em 1596 uma expedição liderada conjuntamente pelo Earl of Essex e pelo Lord Howard of Effingham assaltou Cádis e Faro. Em Faro a
biblioteca do bispo do Algarve foi saqueada e quatro anos depois o dito conde
doou os livros a Thomas Bodley, bibliotecário da universidade de Oxforde. Estes
livros estão presentemente na Bodleim Collection da Oxford Library. Este ataque
fez parte dos 19 anos de guerra entre as coroas de Inglaterra e a dinastia dos
Habsburgos ibéricos, de 1585 a 1604.
Para celebrar a ascensão ao trono na união das coroas de
Espanha e Portugal em 1580 foi cunhada uma medalha com o texto Non sufficit orbis que inferia que a
monarquia ibérica era universal. Para muitas pessoas, esta ideia caíu por terra
em 1588 com a destruição da Invencível Armada mas presistiu em Espanha. A
pretensão ibérica de hegemonia universal também atraíu o ódio dos povos de
Marrocos e da Algéria que fizeram incursões periódicas no litoral algarvio e
andaluz e as estruturas defensivas existentes na costa algarvia têm mais a ver
com estes ataques de piratas do que com os ataques dos ingleses e dos holandeses.
A Guerra
A expedição de 1596 foi a segunda a ser efectuada no sul da
península ibérica. Em 29 de Abril de 1587 Sir Francis Drake com uma armada de
23 navios tinha atacado Cádis e destruído mais de 20 barcos espanhóis. Foi desta
incursão que se disse que “chamuscou” as barbas a Felipe II e que atrasou a
saída da Armada Invencível por um ano. Drake não conseguiu desembarcar e
continuar com a destruição enfrentando um grande exército espanhol. No seu
trajeto de regresso aportou nas praias
da Balieira, do Beliche e no Cabo de São Vicente assim como em Sagres. Tentou
capturar Lagos em 25 de Maio mas a resistência portuguesa liderada por Fernão Teles de Meneses, governador e capitão general do Algarve, foi demasiado
forte. Foi nesta circunstância que um inglês desconhecido fez o desenho, que
chegou aos nossos dias, do famoso edifício no fim do mundo construido pelo
Infante D. Henrique, O Navegador, o que providencialmente é o único plano que
existe da Vila do Infante. Nesta sua viagem de retorno, o capitão Drake aterrorizou
outras zonas da costa portuguesa e nos Açores capturou, a 24 de Junho, a Nau
São Filipe. Já antes, em 1585, Drake tinha atacado e saqueado a Ribeira Grande e a
vila da Praia no arquipélaogo de Cabo Verde.
A derrota da Armada Invencível custou à coroa Ibérica Unida não só homens, dinheiro e navios mas também a sua reputação e a sua autoconfiança. A habilidade da coroa ibérica de defender a sua linha costeira e as armadas carregadas de prata, especiarias e outros tesouros ficava seriamente comprometida. O monarca teve que convocar cortes e pedir mais dinheiro e ao fazê-lo demonstrou que as cortes de Castela tinham o poder e controlo dos gastos e despesas do reino. A Portugal foi pedido que também pagasse um imposto extraordinário para proteção dos seus combóios navais.
D. António Prior do Crato
No seguimento da derrota da armada os ingleses desembarcaram
em Peniche em 1589 numa tentativa de ajudar D. António (1531-1595) a reclamar o
trono ao qual tinha pretensões[1]
mas o apoio popular necessário não existia. Há muitas semelhanças entre D.
António e D. João, Mestre de Avis. Ambos eram filhos bastardos e foram
aclamados reis de Portugal. Os opositores alegavam que a mãe de D. António era
cristã-nova. Outros historiadores alegam que de facto houve o casamento de D.
Luís e que era o seu carater morganático que o fazia secreto. D. António lutou
na batalha de Alcácer Quibir e ao fingir ser pobre e de baixa extração escapou
com o pagamento de um resgate pequeno. A sua pretensão ao trono foi desestimada
pelo Cardeal D. Henrique mas recuperada depois da sua morte em 1580. O reinado de D. António acabou com a ocupação
dos Açores em 1583 pelas forças do marquês de Santa Cruz tendo-se tornado um peão
nas mãos dos políticos internacionais durante os 12 anos seguintes. A rainha
Isabel I de Inglaterra usou Drake para promover a rebelião em Portugal em 1589.
D. António chegou a assinar cartas de corso a ingleses, franceses e flamengos no intuito de saldar as suas
dívidas com os lucros.
As campanhas inglesas
Os ingleses deram-se conta em 1589 que a costa ibérica e
respectivos percursos eram fracamente defendidos e começou uma campanha de
pirataria, concentrando a sua atividade na carreira da índia perto dos Açores.
Apresaram 299 navios entre 1589 e 1591 o que rendeu £400.000, o equivalente à
renda anual da coroa inglesa, sendo o rendimento nos anos subsquentes de
£100.000. No fim do reinado de Felipe
II, em 1598, a armada espanhola na costa atlântica estava dividida em três
bases distintas: Cádis, para proteger a costa atlântica entre o cabo de São
vicente e o estreito de Gibraltar; Lisboa, para proteger a costa poente
portuguesa entre o cabo de São Vicente e o Porto e a chegada dos Açores; e a
Corunha, para proteger a Galiza e a baía de Biscaia. Ainda que houvessem
milícias nomeadas para guardar a costa a tarefa de proteger toda a costa atlântica
da Península Ibérica era evidentemente demasiado grande e os ingleses
continuaram os ataques com impunidade.
O ataque a Cádis e Faro em 1596
Em abril desse ano começou a espalhar-se o pánico entre os comerciantes lisboetas com as notícias de que uma armada inglesa se preparava para atacar a cidade. Felipe II mandou barcos para vigiarem o canal da Mancha e em junho as informações eram tão preocupantes que a cidade ficou em alerta, as suas portas foram fechadas e Lisboa preparou-se para o cerco:
“se ueyo a descobrir tanto a uinda dos Ingresses e serteza disso que à redea solta comesarão grandes e pequenos, altos e baxos a despeiar fazendas, molheres e filhos, chegando a não auer ia quem ouuesse barca nem andas nem caualgadura por nenhum dinheiro.”
A expedição de Robert Devereux, Earl of Sussex e Effingham, Earl
of Nottingham saíu de Plymouth a 1 de junho e a 10 já estava ao largo da costa
portuguesa. Capturaram três barcos espanhóis por quem souberam como estavam as
defesas de Cádis. Chegaram à cidade a 1 de Julho dominaram vários barcos
ancorados na baía, destruíram outros e, durante três dias, saquearam a cidade. O
domínio da situação foi tão completo que permaneceram na baía de Cádis durante
16 dias.
A flotilha inglesa resolveu fazer aguada na costa algarvia.
Se se tivessem feito ao mar dos Açores teriam capturado a nau São Pantaleão com
uma carga avaliada em 800.000 cruzados a qual chegou a Lisboa a 8 de agosto.
Governava então o Algarve o capitão general Rui Lourenço de Távora que reforçou
as defesas de Lagos de igual modo que o bispo de Faro o fez com a sua cidade no
seguimento das ordens recebidas de Lisboa.
O bispo de Faro nessa época era D. Fernando Martins Mascarenhas, recém empossado em 1595, tendo-se mantido no cargo até 1605. Segundo as suas palavras de 1605...
“as mulheres lamentam-se, as crianças choram, uns ocorrem às armas, outros agarram-se às suas coisas, a maior parte são tomados de medo aqui, sem armas ali, sem saber que resolução tomar com a mente perturbada. Os inimigos impiedosos, insolentes, soberbos, truculentos, irados, em pouco tempo põem tudo a ferro e fogo, e tudo destroem: as igrejas, as casa são roubadas e incendiadas.”
A esquadra inglesa chega ao largo de Lagos a 27 de julho mas pesando os prós e os contra de um ataque com resultado duvidoso, seguem viagem costa vicentina acima. Lisboa, sentiu-se ameaçada durante o resto do verão sendo o pomo de discórdia entre castelhanos e portugueses sobre o comando da cidade. No que respeita ao Algarve os custos dos ataques ingleses foram altos em termos de perdas imediatas e a médio prazo pelos custos de manter as guarnições e edifícios defensivos costeiros. Uma das perdas mais importantes foi a biblioteca da diocese de Faro que seguiu num dos barcos rumo a Inglaterra.
A dita coleção de livros foi guardada por Essex até 1600 data em que a ofereceu a Thomas Bodley. Bodley tinha assumido a tarefa de reconstuir e renovar a biblioteca da universidade de Oxford à sua custa onde tinha sido professor. Os pedidos de doações de obras foram atendidos por Essex e dos 176 livros e 215 volumes oferecidos 65 títulos e 91 volumes eram garantidamente do Bispo de Faro uma vez que tinham a sua chancela a ouro nas respectivas capas. Não se sabe se todos os livros substraídos de Faro foram entregues a Bodley ou se alguns foram oferecidos a outras pessoas ou entidades ou permaneceram na posse de Essex. Sorte terem sido oferecidos quando o foram pois Essex foi executado a 25 de Fevereiro de 1601 na Torre de Londres por alta traição. Também é possível que outros livros tenham sido subtraídos por outras pessoas durante o ataque e desses nada se sabe. Como informação complementar há que salientar que uma coleção importantíssima de obras também tinha sido roubada na cidade de Cádis que representou a segunda mais importante coleção de livros oferecidos por Essex.
Algumas informações sobre a oferta de Essex a Bodley. Vinte dos volumes subtraídos de Faro foram
impressos na Península Ibérica sendo os restantes impressos ou em França, ou Alemanha
ou Itália. A quase totalidade dos livros estava escrita em Latim e versavam Teologia,
Direito e ensino.
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Texto livremente traduzido de um artigo escrito em inglês por Peter Kingdom Booker no site Algarve History Association e baseado, por sua vez, no texto A memória à Luz da História ou a Biblioteca doBispo do Algarve Revisitada por João Teles e Cunha, publicado pela universidade do Algarve em 2007.
[1] D.
António era filho, natural ou legitimado, do infante D. Luís e neto do rei D.
Manuel I. Teve numerosa descendência como o foi D. Manuel de Portugal que casou com a condessa Emília de Nassau.
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